quarta-feira, 11 de março de 2009

I shot the sheriff


Que saudade, meu amor. Semana passada gravei aquele samba que eu costumava cantar pra você. Você sabe qual é, mas vou escrever o nome aqui, para dar sorte: "Nos teus braços, impossível descansar". Finalmente consegui essa chance, meu amor. Júlio é o meu produtor, quem sabe? Todo mundo aqui na vila está apoiando, agora vai, hein, garoto? Apenas Dona Ana me olhou atravessado quando ouviu o resultado, disse que não gostou, ficou fraco, disse assim, "egoísta demais esse seu sambinha". Egoísta? Eu não entendi. Porra. Egoísta. Certo. E depois, quem é que vem cuidar de mim, no aperreio? Eu quero mais é ganhar um dinheiro, o resto que se dane. A única coisa que não tenho conseguido deixar de lado é você, meu amor. Não consigo parar de pensar em você. Será que não podemos tentar de novo? Tenho sentido um vazio e acho que só você pode preencher.

Dobrei o papel e botei num envelope. Um envelope grande, pardo. Colei um selo no envelope. Botei o envelope debaixo do braço, o envelope ficou debaixo do braço durante todo o trajeto através das parcas árvores e dos muitos carros atravancando o mundo. Atravessei a avenida, desviei de um cachorro que dormitava na calçada. Pedi uma coca-cola no bar da esquina - aí o envelope não permaneceu debaixo do braço. Ficou assim, meio abandonado sobre o balcão. Meio porque eu não conseguia tirar o olho dele. Ah, Laurinha. A coca cola chegou, derramei no copo, ia tomar assim, de pé mesmo. Foi quando dois caras entraram no bar. Assalto, porra! Mas caralho. Assaltar um boteco, pensei. O dono do boteco, o Zé do Boteco, disse:

- Mas caralho. Assaltar um boteco!

Um dos bandidos olhou pro outro.

- É. Mas caralho. Assaltar um boteco. Tem certeza?

- Mano. Cê queria o quê? Assaltar o Bradesco? Com isso? - E mostrou o 22 enferrujado.

- Tá bom. - O dono do boteco deu lá dez reais pros dois.

- Pooorra, mas só isso?

- Tá pensando que isso aqui é Moema, filho? E dê graças a Deus!

Os bandidos olharam pra mim. Aê, doido, passa o dinheiro pra cá. Tenho dinheiro não, mano. Temi por minha sinceridade. E se os caras me dessem um tiro na cara? A violência anda tão foda. Tentei amenizar minha reação. Tou sem nada, é sério. Eles olharam pra mim, incrédulos. Tentei amenizar ainda mais a situação. Mas, porra, se quiser pegar uma breja aí na minha conta, firmeza. Mas só uma que tá foda.

Eles pediram a cerveja na minha conta. Entrou um cara, comprou cigarro. Olhou pra eles.

- Ô, Alê! Que que cê tá fazendo por aqui, truta?

- Ô, mano. Firmão?

Eles se abraçaram. Alê apresentou o cara que havia comprado cigarros pro outro bandido. Zé do Boteco bocejou. Terminei minha coca cola, falei tchau assim pra todos, assim pra ninguém. Já ia saindo, quando um dos bandidos, o que não era o Alê, me disse:

- Mas, ô. E esse envelope aí?

- É só uma carta.

Ele olhou pro comparsa. Pausa dramática. Olhou pra mim novamente.

- Tem certeza?

- Tenho. Claro que eu tenho.

- Eu não acredito.

Ai, caralho, pensei. Mais essa agora. Então chegou um cara vestido num conjunto verde fosforescente, uma capa amarela amarrada no pescoço. Tinha uma máscara no rosto e uma insígnia no peito. Um S. Falei, pronto, tou salvo. Era o Super. Super Bom Amigo. Bom Amigo era um supermercado, ali na esquina. O cara descia a rua entregando panfletos de divulgação das promoções. Orra, cinqüenta e nove centavos o quilo da alcatra!

- Vai, mano, me dá esse envelope.

- Tá, toma.

Ele pegou o envelope com a mão esquerda. O 22 descansava na mão direita. Um tiro de 22 é fatal? Ouvi uma história, certa vez, de que o primo de um conhecido havia tomado um tiro na testa, um tiro de 22, e o tiro havia ricocheteado.

- Que porra é essa? - O cara começou a ler a carta - Putz, que merda! "Que saudade, meu amor..."

Dei uma bica no revólver do cara. A arma caiu no meio da calçada. Os dois bandidos, o amigo dos bandidos e eu saltamos na direção do 22. Zé do Boteco provavelmente bocejou - eu não tive tempo de reparar nisso. Segurei o 22, todo mundo segurou o 22, lutamos, brincamos com a morte, o 22 disparou acidentalmente. A bala rasgou o ar e acertou. Puta merda.

O tiro havia acertado um Vectra estacionado do outro lado da rua. O pára-brisa do Vectra foi pro saco. O Vectra era do Mimi, Mimi era um traficante conhecido na área. Mimi já tinha pegado cana umas duas vezes e, diziam, havia uma lista de desafetos mortos dependurada na parede do quarto dele.

- Puta merda.

Levantei depressa, disfarcei, uma multidão começou a se formar. Peguei o envelope rasgado e a carta, puta merda, puta merda. Desci a rua depressa, mas discretamente. "Que saudade, meu amor..." Realmente, qual era o sentido daquilo?

Já em casa: - Tia, a senhora ainda tem aquela casa no interior?